-------- "A criação é a sua amiga, cujo braço me desperta"
sábado, 26 de outubro de 2013
"Relatos de um enfermo"
Seguia, um bolo de carne cozinhando dentro de um saco feito de couro,
pele, que, caso sangrasse dentro desse caldeirão de pirexia, nada seria
se não eu mesmo, a mandíbula aberta num grito mudo, choramingando para
que o vento lufado às lenhas da infecção não me alcancassem com seus
álgidos gládios. E não pela primeira vez eu ia, com ela, àquele leito,
contudo antes a celebrar o quanto éramos saudáveis - os solavancos todos
pelo caminho, cada um deles, um a um, empurrando, apressando o meu
juízo já manco a lugar nenhum... À ideia de que a qualquer momento os
ossos da minha caixa craniana irão todos se desencaixarem um dos outros,
como um corpo estelar que já ultrapassara a nitiscência, sob o colapso
pirogênico do hipotámolo em seu centro. Meus olhos ardem.
Subitamente a minha visão é turva. Rebelou-se, num movimento de
revolução, o humor vítreo em correntes de convecção? Estas lágrimas são
de prostaglandinas? E enquanto me dissolvia, pois é o que acontece conosco, eu percebi:
A febre é algo que te induz a morrer sozinho.
Por mais que tu queiras ter os entes queridos ao teu lado, qualquer
coisa além da sua inútil presença se torna algo insuportável: o frio
infernal que tu sentes, o frio de quando se sente a vida esvair do
corpo, clama por um fim! e essa necessidade, desejo, tal o espírito
pequeno à terra prende à carne a enfermidade, e ali a encerra numa
agonia que se julga ser à eternidade. Contudo a pena é sempre
muito justa: pedes pelo abraço daquele que te vê sofrendo e partilha a
tua dor, contudo certas coisas dentre as que há de mal no homem,
divididas, se multiplicam: a febre é um mal grande o bastante para se
sentir sozinho, onde um fútil abraço não tarda em tornar o frio em
quentura irritante não é tolerado afeto, nem complacência. Somente um
pouco de água e comida parca, isto é o bastante preso em grilhões de
músculos rijos cuja a menor das forças se torna um imensurável esforço.
Não há o que fazer, a única disposição sentida é aquela para se deitar e
esperar... Definhar e dissolver-se nesta febre que, eu percebi, é algo
que te induz a morrer sozinho.